
Segurando bem firme a sacola em suas mãos, Ana seguia pelas ruas vazias. Gostava desses cenários tristonhos. Costumava criar histórias mirabolantes no caminho pra casa. Quanto mais frio, mais vazio e sombrio, mais linda era a criação. Brincava de inventar pra disfarçar a dor que carregava. O peso da sacola nada era comparado ao aperto que um dia sentiu no peito. Qualquer dor, por mais forte que fosse, não lhe incomodava.
"Vai passar", dizia ela todas as vezes com isso imenso sorriso no rosto. Não havia tempo ruim que não passasse. E assim Ana seguia pelas rua vazia. Uma mão na sacola, outra no bolso e um assovio bobo, uma canção qualquer. E não fosse o que estava para acontecer a seguir, Ana teria chegado em casa como todas noites. Falaria com o gato Teobaldo, colocaria sua ração favorita, tomaria uma xícara de café, ou quem sabe de chá e adormeceria na frente da TV ligada em The Big Bang Theory com um livro qualquer no colo. Mas não foi assim. Sempre controlou muito bem suas emoções. Nem sempre na verdade, mas quase sempre foi assim. A cena seguinte causou-lhe uma tormenta tão grande que se não fosse por tantos anos de autocontrole teria desabado bem ali no chão frio, na chuva que molhava sua capa. Sentiu o ar acabar, uma pressão envolveu-lhe os ouvidos e uma lágrima escapou deixando um rastro no rosto antes rosado. Tomara os mínimos cuidados para que esse momento jamais chegasse, mas a vida é dona de si e jogou Ana na rua de sempre, no horário de sempre, mas com a pessoa errada. Reconheceu de longe o andar meio torto, de quem andava pulando poças. Viu as mãos nos bolsos e o cantarolar tão conhecido. Nunca misturava horários, sabia a roupa exata para usar, canções eram separadas magicamente. E os sentimentos eram assim. Mas sabia, em seu intimo ela sempre soube, que o destino era cruel, vingativo e fazia sofrer. Ou talvez ela só queria acreditar que fosse assim pra achar um meio de justificar o que acontecia agora. Andava pelo mesmo caminho, evitava lugares antes tão bem conhecidos. Inútil. O rapaz parecia perceber que algo estava errado. Torceu para que pudesse passar por ele sem que ele a reconhecesse, fez um pedido aos céus, sabendo que seria inútil, mas não lhe custava tentar. Ana tentou andar, um passo de cada vez, cabeça baixa, segurando forte a sacola. Um,dois,três,quatro...mais seis passos e suas vidas se cruzariam. Se conseguisse passar sem ser reconhecida entraria na primeira rua que visse, numa tentativa de se esconder. Normalizou o passo e continuo seu caminho.
"Não olhe para mim, não olhe, por favor." Passou por ele sem olhar. Os segundos que se seguiram foram os piores, apesar de não ver, o cheiro dele lhe atingiu com toda força. Ainda usava o mesmo perfume. Olhou seus pés. O sapato ainda era o mesmo, extremamente gasto. Lembrou-se dele dizendo:
"Andarei com esses sapatos Ana até não haver mais nada dele, irei com você onde for." Deu um sorriso e seguiu seu caminho. E achando que a noite por fim estava acabada, um som quebrou o silêncio e transpassou Ana. Daniel abriu a boca, a voz rouca e doce atingiu os seus ouvidos:
"Ana?" Ela continuou andando, torcendo para que ele achasse que estava enganado e seguisse seu caminho, mas Daniel nunca foi assim. Sempre corria atrás, jamais deixava uma dúvida pairando no ar, lhe tirando o sono.
"Ana, é você?" Acelerou os passos, se entregando assim. Tentou não olhar pra trás, mas os passos dele ecoavam na rua vazia. Virou-se. " Droga Daniel. Você não sabe o que significa: Fica longe de mim?" Os olhos cheios de lágrimas, os lábios trêmulos. Os olhos dele cruzaram com os dela. Dois segundos de silêncio. A sacola no chão, as mãos dele subiram pela sua nuca, alcançaram seus cabelos no mesmo momento em que os lábios dele encontraram os dela. Quente. O beijo era quente, cheio de saudade. Testa com testa, o ar quente da respiração dele aquecia o rosto dela. Como sentira falta daquele cheirinho de hortelã. O único som era esse, a respiração ofegante dos dois.
"Você não sabe o quanto eu torci pra te encontrar, sabia?" Disse Daniel. Ana apenas sorriu, confusa. Mas ele não se calou e nem foi embora como ela achava que iria. Sabia que isso era um sonho. Como tantos outros, esse devia ser só mais um sonho.
"Eu te procurei por meses, um dia tive a impressão de ver você, mas quase não reconhecia, seus cabelos estão longos e escuros. Mas você sabe como eu sou, não consigo dormir com uma dúvida me tirando o juízo. Então passei por aqui várias vezes, por vários dias. Mudava somente o horário. Mal posso acreditar que é você,sabia ?" Ana quis ser sarcástica. Mas no fundo estava feliz de ver que não era um sonho. E se fosse, que se dane. Era a primeira vez em que beijava ele em um sonho. O último encontro dos dois havia sido fazia tantos anos, ou assim parecia para ela. Andavam brigando, não se entendiam e por fim, resolveram dar fim ao relacionamento, em meio a brigas, lágrimas e muitos, mas muitos gritos. Mas essa história fica para outra hora. O que importava saber é que ambos sofreram. Ana e Daniel eram como Romeu e Julieta, Queijo e Goiabada. A verdadeira explicação para a frase " Feitos um pro outro". Se conheciam mais claro que água cristalina. Eduardo e Mônica ficavam no chinelo comparados á eles. Diziam que a história tinha acabado de vez, mas no fundo no fundo, sabiam que um dia qualquer se cruzariam. E no inverno de 1996 isso aconteceu. Teobaldo sentiu fome essa noite. Ficou deitado na janela olhando a rua, esperando uma Ana que só chegou no dia seguinte, trazendo alguém estranho, alto, cabelos negros e olhos claros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário